Este site poderá não funcionar corretamente com o Internet Explorer. Saiba mais

Direito de Participação e Representação (1)


Margarida Santos

 Introdução
A Entidade Reguladora da Saúde (ERS) dirigiu um convite à iniciativa MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde, no sentido de participarmos nas Jornadas deste ano. Sob o tema “Direitos e Deveres dos Utentes dos Serviços de Saúde”, coube-nos a participação no painel dedicado ao “Direito de Participação e Representação”.

Enquadrar o tema da participação pública em saúde, em Portugal, é, antes de mais nada, um exercício jurídico, desde logo por este constituir-se como um direito consagrado na Constituição da República Portuguesa (CRP), de 1976. De facto, a CRP, no seu artigo 2.º, cuja epígrafe refere Estado de direito democrático, postula o seguinte: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, […] visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.”. Está, portanto, desde logo previsto que o regime democrático português goza de uma especificidade, que diz respeito à participação. De seguida, o artigo 9.º, que se refere a Tarefas fundamentais do Estado, determina também, na sua alínea c) que uma das tarefas diz respeito a “Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais;”. Finalmente, e ainda no âmbito da CRP, o ponto 4 do artigo 64.º, diz-nos que “O serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada.”.

Este primeiro enquadramento, do ponto de vista legal, relativamente à participação na área da saúde em Portugal, parece-nos fundamental para guiar a nossa discussão sobre a importância da participação pública em saúde. Isto, porque consideramos que, no ano em que o regime democrático atinge, finalmente, o mesmo número de anos que o regime autoritário que vigorou em Portugal, de 1926 a 1974, é ainda mais importante relembrar os nossos direitos constitucionais e, de entre estes, quais os que permanecem por cumprir.

Efectivamente, podemos considerar que, em Portugal, o direito à participação tem estado, essencialmente, centrado no exercício do voto. Há, no entanto, todo um conjunto de mecanismos de envolvimento dos cidadãos e das cidadãs, nos processos de tomada de decisão política que podem, e devem, ser aprofundados pelos tradicionais decisores políticos. Este déficit democrático que existe no nosso país, no que ao envolvimento dos indivíduos nas políticas públicas diz respeito, assume particular relevância na área da saúde.

 

Enquadramento da participação pública em saúde em Portugal

Em Portugal, após a consolidação da democracia, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi consagrado na Lei n.º 56/79, de 15 de setembro, instituindo uma rede de instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde a toda a população, a financiar através de impostos, garantindo assim que o Estado salvaguarda o direito à proteção da saúde. O SNS é ainda hoje reconhecido como uma das maiores conquistas da nossa democracia.

Na área da saúde, desde 1960 que a participação cidadã vem sendo discutida como prioridade, mas apenas na Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, conhecida como Conferência de Alma-Ata (actual Almati, no Cazaquistão), em 1978, se firmou essa necessidade no ponto IV da Declaração aí apresentada: “É direito e dever dos povos participar individual e coletivamente no planeamento e na execução de seus cuidados de saúde”. A Declaração de Alma-Ata veio então colocar na agenda da saúde o tema da cidadania em saúde, e dos sistemas de saúde focados nos cidadãos e cidadãs.

No contexto português, já a anterior Lei de Bases da Saúde, de 1990 (Lei n.º 48/90, de 24 de agosto), previa a “participação dos indivíduos e da comunidade organizada na definição da política de saúde e planeamento e no controlo do funcionamento dos serviços” [Base II, alínea g)]. Ainda nesta legislação, estava igualmente prevista a criação de um importante órgão de consulta do Governo, no qual os utentes tinham assento, o Conselho Nacional de Saúde. Efectivamente, embora estivesse previsto há mais de 25 anos, só em 2016 o mesmo foi instituído, através do Decreto-Lei n.º 49/2016, de 23 de junho.

A Lei de Bases de 1990 foi revogada pela Lei n.º 95/2019, de 04 de setembro, a nova Lei de Bases da Saúde, na qual a participação pública em saúde ganha todo uma nova relevância política. A título de exemplo, é de relevar o disposto na sua Base 5, inteiramente dedicada à participação, na qual se prevê no ponto 1: “O Estado promove a participação das pessoas na definição, acompanhamento e avaliação da política de saúde, promovendo a literacia para a saúde.”; e no ponto 2: “A participação a que se refere o número anterior pode ocorrer a título individual ou através de entidades constituídas para o efeito.”. Ainda na Base 4, relativa à Política de Saúde, é também referido, na alínea f) do ponto 2, que são fundamentos da política de saúde: “A participação das pessoas, das comunidades, dos profissionais e dos órgãos municipais na definição, no acompanhamento e na avaliação das políticas de saúde.” Finalmente, é ainda de referir o que está previsto na última base, Base 37, relativa à Avaliação, nomeadamente, de programas públicos ou privados que possam afectar a saúde pública. Esta avaliação, diz-nos a Base 37, deve incluir também os contributos recebidos da participação pública.

Nesta incidência o tema da participação na nova Lei de Bases não surge de forma descontextualizada. Pelo contrário, não devemos menosprezar o contributo que os representantes das associações de doentes deram no seio da Comissão para a Revisão da Lei de Bases da Saúde (LBS) de 1990. De facto, para que fosse possível a incorporação de parte da visão e das expectativas dos cidadãos na letra da lei, foi fundamental a decisão do então responsável pelo Ministério da Saúde, o Dr. Adalberto Campos Fernandes, no sentido de estabelecer uma Comissão de Revisão da Lei de Bases, na qual, de entre os seus 6 membros, viriam a estar duas representantes das associações de doentes, em igualdade de circunstâncias com os restantes (Despacho n.º 1222-A/2018).

O ano de 2019, ano de aprovação da nova LBS pode, aliás, ser considerado um ano emblemático para a participação pública em saúde em Portugal. Neste mesmo ano, pouco tempo depois da publicação da nova Lei de Bases da Saúde, é também promulgada a Carta para a Participação Pública em Saúde (Lei n.º 108/2019, de 9 de setembro, adiante designada Carta). A Carta foi o culminar de um longo trabalho colaborativo de um conjunto de associações de doentes e uma associação de consumidores, sob supervisão de dois investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Estes diferentes actores associaram-se numa iniciativa, o MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde, tendo como denominador comum colocar na agenda mediática e política o tema da participação pública em saúde. Lançada em 2015, esta iniciativa trabalhou colaborativamente com muitas outras associações e entidades, na área da saúde, no sentido de elaborar uma proposta de institucionalização da participação pública em saúde em Portugal.  A Carta materializou essa vontade de estabelecer princípios orientadores da participação pública em saúde, de propor formas e mecanismos de envolvimento dos cidadãos nos processos de tomada de decisão em saúde, e ainda de consensualizar um conjunto de critérios de elegibilidade para a representação dos cidadãos nesses processos.

Na literatura sobre participação, é frequente depararmo-nos com a proposta da Sherry Arnstein[1], a chamada Escada da Participação. Nesta, os dois níveis mais elevados da Escada, denominados “controlo do cidadão” e “poder delegado”, inspiraram os princípios plasmados na Carta para a Participação Pública em Saúde. Concretamente, o envolvimento significativo, o estabelecimento de parcerias, o foco nas comunidades vulneráveis envolvidas, a diversificação das formas de participação, a transparência, a boa governança, enfim, a democracia.

Após um longo processo de sensibilização de diversos actores políticos para a importância da participação pública em saúde, através da divulgação e discussão da Carta, a Assembleia da República discutiu o projeto de lei n.º 1122/XIII/4 (Bloco de Esquerda) - Aprova a Carta para a Participação Pública em Saúde e os termos da sua divulgação, implementação e avaliação, tendo o mesmo sido aprovado a 19 de julho de 2019, e dado origem à Lei n.º 108/2019, de 9 de setembro.  A actual legislatura tem em mãos o desafio da regulamentação da Carta, em particular, a sua implementação nas várias instituições do Ministério da Saúde e do SNS.

Mais recentemente e, consideramos nós, no seguimento desta paulatina incorporação da participação pública em saúde na legislação portuguesa, é aprovado o novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, através do Decreto-Lei n.º 52/2022, de 4 de agosto. Este diploma reforça, no número 2 do artigo 4.º, que "aos beneficiários do SNS são reconhecidos os direitos e deveres previstos na lei, designadamente os direitos previstos na Carta dos Direitos de Acesso aos Cuidados de Saúde pelos utentes do SNS e na Carta para a Participação Pública em Saúde". É ainda referido, na alínea i) do número 1 do artigo 9.º, que o órgão então criado, a Direção Executiva do SNS, tem, entre outras, a competência de “promover a participação pública no SNS, garantindo a intervenção dos beneficiários do SNS, designadamente das associações de utentes, nos processos de tomada de decisão”. Não podemos deixar de salientar o estabelecido na Secção VI do Estatuto do SNS, inteiramente dedicada à Participação. Esta secção desenvolve as possibilidades de participação dos beneficiários, seja a título individual ou através de entidades representativas de beneficiários ou utentes, bem como a participação dos municípios, e determina a realização e divulgação de resultados de inquéritos de satisfação como parte integrante dos sistemas de avaliação do SNS. Estes desenvolvimentos são, aliás, fiéis ao disposto na introdução do diploma, mais concretamente a seguinte passagem: “A participação, em especial dos utentes e dos municípios, e a articulação com outras entidades são os temas que as duas últimas secções do Estatuto do SNS enquadram…revelando a escolha de uma política de construção democrática dos serviços públicos de saúde, onde todos têm um papel a desempenhar, e, simultaneamente, de uma abordagem multissetorial da efetivação do direito à saúde.”. Actualmente, o Governo está ainda dentro do prazo de 180 dias previsto no diploma, para proceder à regulamentação do mesmo.

Para além dos diplomas legais que enquadram a participação pública em saúde em Portugal, há também um conjunto vasto de documentos que, por um lado, vêm fazendo algum caminho no âmbito da participação e, por outro, que preveem alguns espaços de envolvimento dos cidadãos.

O Plano Nacional de Saúde (PNS) 2012-2016, na sua revisão e extensão a 2020, constitui um bom instrumento estratégico de âmbito nacional relativamente à participação ativa das organizações representativas dos interesses dos cidadãos. De facto, na sua edição de 2020, o PNS surge na sequência das recomendações feitas pela Organização Mundial de Saúde – Europa (Estratégia Health 2020 da OMS – Euro), no relatório sobre a implementação do PNS 2012-2016. Inspirado pelo modelo de co-produção de saúde, a revisão e extensão do PNS a 2020 assentou o seu desenvolvimento nos seguintes elementos: foco na saúde e no bem-estar; Governança Participativa; Whole-of-governement approach; Whole-of-society approach; abordagem pelo ciclo de vida; Foco na Equidade; Determinantes Sociais; Empowerment dos cidadãos; Health Impact Assessment; e Foco no sistema de saúde. É o conjunto destes elementos que conduzem o PNS a postular a ideia de um sistema de saúde centrado no cidadão, advogando pela participação dos cidadãos e dos seus representantes em todas as decisões em saúde.

O novo PNS, cuja consulta pública terminou a 7 de maio do presente ano, parece vir adoptar uma abordagem diferente. O documento que se conhece, e que está disponibilizado online, assume como prioridade, e bem, a articulação da política de saúde com os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Na nossa perspectiva, os ODS estão perfeitamente alinhados com uma visão participativa da tomada de decisão em saúde. Na versão até agora conhecida, a participação é abordada do ponto de vista da implementação do próprio PNS, e não como estratégica nos processos de tomada de decisão em saúde, induzindo técnicos e peritos responsáveis para implementá-lo para uma visão, porventura, mais instrumental da participação pública em saúde, por comparação ao que estava disposto no PNS anterior. Se é certo que no âmbito deste novo PNS se procurou envolver, numa Comissão de Acompanhamento, mais de 100 organizações cuja actividade tivesse impacto na saúde, em Portugal, e a iniciativa MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde foi uma das entidades que participou nesta Comissão, é também verdade que o processo de envolvimento das associações foi, desde o início, pouco eficaz. Talvez por este motivo seja evidente a ausência da visão das associações de doentes no documento.

Para além deste documento estratégico e orientador da política de saúde em Portugal, é de salientar a existência de espaços de participação pública em saúde em Portugal. Ainda que incipientes, extremamente informais e, muitos deles, inoperantes, julgamos importante elencar aqui, por um lado, alguns mecanismos de envolvimento dos cidadãos já previstos legalmente e, por outro, referir algumas experiências de envolvimento que, ainda que isoladamente e desarticuladas entre si, não deixam de constituir em si mesmas práticas relevantes de participação pública em saúde. Vejamos alguns órgãos de decisão política, e/ou aconselhamento governamental, cuja composição constitui um espaço de participação dos cidadãos, nalguns casos, em igualdade de circunstâncias com os restantes membros: como já referimos anteriormente, o próprio Conselho Nacional de Saúde (Decreto-lei n.º 49/2016, de 23-ago); o Conselho Nacional de Saúde Mental (Decreto-lei n.º 35/99, de 5-fev); o Conselho Nacional para os Problemas da Droga, das Toxicodependências e do Uso Nocivo do Álcool (Decreto-lei n.º 1/2003, de 6-jan); o Conselho Consultivo da própria Entidade Reguladora da Saúde (artigo 44.º, Decreto-lei n.º 126/2014, de 22-ago), que destaco aqui, e que determina que dos seus 20 membros, 5 são representantes dos utentes, por intermédio das associações específicas de utentes de cuidados de saúde e das associações de consumidores de caráter geral. Sendo que o conselho consultivo é o órgão de consulta e participação na definição das linhas gerais de atuação da ERS e nas decisões do conselho de administração da ERS. Outra entidade que tem aprofundado o envolvimento dos cidadãos é o Infarmed que, para além do já previsto Conselho Consultivo (Decreto-lei n.º 46/2012, de 24-fev) bem como da Comissão de Avaliação das Tecnologias de Saúde (Deliberação n.º 662/2016), desenvolveu mais recentemente o Projeto INCLUIR, que prevê a participação das entidades representantes de pessoas com doença em diversas áreas em que o Infarmed intervém, em particular, nos processos de avaliação de novos medicamentos e dispositivos médicos para comparticipação/avaliação prévia hospitalar.

No âmbito dos serviços de saúde, e ainda que alguns destes diplomas tenham agora sido revogados, com a aprovação do novo Estatuto do SNS, é de referir os Conselhos da Comunidade, ao nível dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS, Decreto-lei n.º 28/2008, de 22-fev, revogado); os Conselhos Consultivos nos Hospitais (Decreto-lei n.º 233/2005, de 29-dez); as Comissões de utentes (Lei n.º 44/2005, de 29-ago); os Gabinetes do Cidadão (Decreto-lei n.º 28/2008, de 22-fev, revogado); Comissões de ética para a saúde (Decreto-lei n.º 80/2018, de 15-out).

Queremos ainda listar algumas Iniciativas de carácter mais ad-hoc, mas relevantes no contexto do envolvimento das associações de doentes, e outras organizações ligadas à saúde, em Portugal: no âmbito da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), o projeto de teleconsulta na área da psoríase; a audição de stakeholders para a reforma e modernização do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge; no âmbito dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, a Comissão de Acompanhamento da Informatização Clínica; o Grupo Técnico Independente destinado a avaliar os Sistemas de Gestão do Acesso a Cuidados de Saúde no SNS (Despacho n.º 9317/2017); o Grupo de Acompanhamento para a Cibersegurança na Saúde; e, mais recentemente, o Grupo Trabalho PRR - Sistemas de Informação para o Cidadão. A Comissão interministerial de coordenação da Estratégia Integrada das Doenças Raras; o plenário da Comissão de Ética para a Investigação Clínica; a Comissão Setorial para a Saúde (CS/09) e respetivos grupos de trabalho, do Instituto Português de Qualidade; e, finalmente, os planos regionais de saúde, ao nível das Administrações Regionais de Saúde, e os planos locais de saúde, ao nível dos Conselhos Municipais de Saúde.

        A participação pública não é, apenas, uma boa ideia, ou um mecanismo de aproximação dos cidadãos aos centros da decisão política, é também um meio de obter melhores resultados em saúde, de melhorar a qualidade das decisões, de incrementar a responsabilidade e a transparência nos serviços de saúde, através da valorização do saber e da experiência das pessoas com doença.[2] A participação pública constitui-se, na nossa perspectiva, como a estratégia mais eficaz de superação do crescente “défice democrático” que caracteriza os sistemas de saúde.

 

[1] Sherry R. Arnstein (1969) A Ladder Of Citizen Participation, Journal of the American Institute of Planners, 35:4, 216-224.

[2] Serapioni, M. (2018). Revista Crística de Ciência Sociais, 117 | Número semitemático, Dossier "Participação pública nos sistemas de saúde"


Partilhar